domingo, 27 de março de 2016

O jogador mais importante da história

            A história tática do futebol é muito complexa, são muitas variações, reformas, contrarreformas, sucessos e fracassos. Qualquer tentativa de sintetizar isso estará fadada ao fracasso, mas podemos tentar: Rompimento com o Rugby e criação da Football Association, Pirâmide, WM e o Metodo, Wunderteam e Verrou, a Guerra, Mágicos Magiares, Catenaccio, Futebol Total, Jogo Italiano e 4-4-2, Futebol Científico e o Tiki Taka. Todas as escolas futebolísticas têm seus mestres, pupilos e líderes, fazendo que todas acabem se relacionando entre si e criando toda uma lógica no processo do desenho tático, criando líderes e influências em métodos diferentes. Lobanovskyi é fundamental para a existência do 4-2-3-1 atual, assim como Vittorio Pozzo foi essencial para a Grande Inter de Helenio Herrera. Ser um personagem do futebol que consegue ser lembrado em várias épocas é sinal de que você foi além do papel do craque, que você ajudou a construir o esporte e que o jogo não seria o mesmo sem você. Lobanovskyi, Michels, Ancelotti, Sacchi, Pozzo e vários outros quase chegaram ao topo do futebol mundial, só não chegaram lá porque o posto sempre foi de Johan Cruyff.

            Para entender a influência de Cruyff no futebol mundial é importante entender como o futebol era jogado antes da revolução holandesa. O futebol nos anos 60 era dividido entre quatro países: Argentina, Itália, Espanha e Inglaterra. Enquanto os latino-americanos dominavam o continente jogando um futebol baseado na violência e na opressão, os três europeus se dividiam no domínio da European Cup. A Itália seguia usando o Catenaccio popularizado por Helenio Herrera e Nereo Rocco, a Espanha ainda usava o que havia sobrado do pentacampeão Real Madrid e os ingleses tentavam emular o futebol rápido bem sucedido da seleção nacional da copa de 1964. Todos os times fortes da época tinham como característica uma forte obediência tática e se movimentavam apenas nos seus setores designados. Ou seja, Sandro Mazzola jamais sairia para buscar a bola na Grande Inter e nunca voltaria para marcar. O mesmo com jogadores como Bobby Charlton no Manchester United de Matt Busby ou Gianni Rivera no Milan de Rocco. O futebol era então pensado em dois espaços de campo: ataque e defesa. Quem ataca não volta muito para marcar, quem defende raramente desce no ataque. Havia, claro, alguns jogadores que escapavam do modelo, conseguindo fazer muito bem as duas funções ao mesmo tempo. O espanhol Luiz Suárez e o britânico David Sadler foram os primeiros expoentes do jogador polivalente que Johan Cruyff traria poucos anos depois.
            O mais importante é entender que o jogo prévio do Futebol Total era muito fixo, lateral e previsível. Já o Futebol Total era sobre voltar e descer com todos os jogadores, diminuir espaços na defesa e o ocupar buracos no ataque. O que poucos sabem é que o Futebol Total foi na verdade resultado de um processo que só chegou ao seu auge quando encontrou o jogador tático perfeito. Se fizermos a genealogia dos treinadores que usaram Cruyff nas equipes que aderiram ao método podemos entender melhor onde ele nasceu. Rinus Michels, mais conhecido treinador a usar o Futebol Total, trabalhou com o camisa 14 no Ajax, no Barcelona, na seleção e no Los Angeles Aztecs. Michels foi um ótimo jogador do Ajax, tendo atuado na equipe por mais de 12 anos. Lá, aprendeu os conceitos iniciais da teoria com o inglês Jack Reynolds, um dos primeiros técnicos do Ajax. Reynolds foi o primeiro treinador a usar o jogo de movimentação, mas teve pouca repercussão no cenário europeu graças a segunda grande guerra, época onde teve suas segunda e terceira passagem pelo clube holandês. A estruturação de um sistema de jogo diferente trouxe resultados, a equipe ganhou títulos e o estilo de jogo foi mantido e tornou-se a identidade do clube. Michels jogou um ano sob a tutela do inglês, mas viu suas ideias serem desenvolvidas pelos técnicos seguintes até que ele mesmo teve a oportunidade de treinar o Ajax. Se você é desses que gostam de teste DNA para descobrir quem é o pai de quê, pode ter a certeza que Jack Reynolds é o pai do Futebol Total.

Cruyff e Rinus Michels
            Outro que trabalhou com Cruyff foi Ernst Happel. Happel treinou apenas uma vez o craque, mas sempre o viu jogar em partidas pelo campeonato holandês. Bicampeão europeu, Happel era austríaco e viu no Futebol Total a realização do estilo de jogo do clássico Wunderteam, equipe da Áustria que era treinada por Hugo Meisl na copa de 1934. Baseado no sistema de pirâmide danubiana, Meisl montou uma equipe vanguardista que tinha como principal característica a fluidez no ataque que era liderado por Mathias Sindelar. A ligação então seria a seguinte: Meisl > Happel > Cruyff. O problema é que Happel e Cruyff fizeram apenas uma partida juntos pela seleção, havendo então um distanciamento entre os dois. A resolução veio no Barcelona. O time catalão não trouxe apenas o craque holandês, mas também o treinador Rinus Michels e o meia Johan Neeskens. Neeskens foi o principal jogador holandês na copa de 1978, sendo o segundo melhor daquela geração. Foi assim que os conceitos de Happel e Hugo Meisl chegaram até a dupla Michels/Cruyff (vale ressaltar que Michels foi treinado no Ajax por Karl Humenberger, mais um da escola austríaca). O que podemos ver então é que o Futebol Total não foi inventado por Cruyff, suas premissas foram testadas várias vezes antes e com certo sucesso. Mas sempre faltou algo a mais, algo que transformasse toda a ideologia de movimentação e ocupação do espaço e das linhas de corte em uma verdadeira máquina que pouco falhasse.
            Cruyff não foi nenhum Pelé, era ótimo, artilheiro e habilidoso, mas estava longe de ser um desses jogadores que quando você olhava tinha a impressão de estar num show de mágica. O que fez Cruyff ser uma das maiores lendas da história foi sua inteligência e a capacidade de ler o jogo. O holandês ocupava os espaços com naturalidade e conseguia passar a bola com velocidade no jogo proposto pelo Futebol Total. Além disso, marcava muito bem e era espetacular ao cortar as linhas de passe. Ele era a peça que faltou para Reynolds e Meisl e foi o principal responsável para a funcionalidade tática da laranja mecânica. Sem um atleta como ele a bola rolaria menos, ataque e defesa ficariam distantes e Rinus Michels não teria conseguido chegar ao ponto mais alto do Futebol Total. Em termos gerais, Cruyff foi um dos maiores armadores da história, mas tinha também uma capacidade bizarra para driblar e finalizar. Foi o jogador mais versátil da história e um dos pouquíssimos casos de “jogador tático” com talento real.

Cruyff e Cruyffinho, conhecido como Guardiola.
            Enquanto o jogador Cruyff foi o símbolo da revolução tática, o treinador foi um maestro que tentou repassar tudo aquilo que aprendeu em seus tempos de atleta. Sua passagem no Ajax foi mediana, mas foi o suficiente para leva-lo até o Barcelona. Ídolo como jogador dos Blaugranas, Cruyff é o pai do Tiki Taka proposto por Guardiola no final dos anos 2000 e do sistema de formação de atletas do clube. Foram quatro títulos da Liga, um da Copa do Rey, três Supercopas nacionais, uma Copa dos Campeões de Copas, uma European Cup e uma Supercopa Europeia. No clube Cruyff treinou atletas como Stoichkov, Romário, Luís Henrique e Guardiola, os dois últimos como pupilos para o futuro da equipe que desenvolveram o Tiki Taka, variação do Futebol Total. Mas o que marcou mesmo sua passagem foi a reestruturação da La Masia, a categoria de base do clube. A ideia de que os times da base deveriam jogar da mesma forma que o profissional foi ideia do holandês e é considerada hoje em dia uma dos maiores objetivos de todos os clubes do mundo. Seu trabalho como técnico foi fundamental e influenciou vários treinadores pelo mundo, de Guardiola a Carlos Ancelloti, de Luís Henrique a Louis van Gaal.
            É claro que o gênio holandês tem uma história riquíssima no futebol e sua genialidade exige uma explicação muito mais bem detalhada do que essa que dei. Mas voltando naquela ideia de sintetizar coisas complicadas, vamos tentar definir a importância de Cruyff: se não fosse ele não haveria Futebol Total, Rinus Michels, Ajax e futebol holandês. Se não fosse Cruyff os nomes de Hugo Meisl e do Wunderteam ficariam perdidos na história, Jack Reynolds não seria considerado pai de nada e a história da análise tática seria ainda menos linear. Se não fosse Cruyff não existiria Guardiola, Tiki-Taka, Barcelona ou La Masia. Não é que eu queira ser hiperbólico, mas sem Johan Cruyff talvez não existisse nem mesmo futebol. Pelo menos não como conhecemos hoje.

            Algumas Frases de Cruyff:
            "As pessoas diziam que eu estava indo para um país fascista. O presidente do Ajax queria me vender para o Real Madrid. Mas eu nasci logo após a guerra e fui ensinado a não apenas aceitar qualquer coisa. O Barcelona não era do mesmo nível do Real Madrid, mas era um desafio jogar por um clube catalão. Barcelona era mais do que um clube."

            "Todos os treinadores falam sobre movimentação, sobre correr muito. Eu não corro muito. Futebol é um jogo que você joga com o cérebro. Você precisa estar no lugar certo na hora certa, não muito cedo nem muito tarde."
           
            Algumas frases sobre Cruyff:
"Tivemos quatro reis do futebol: Di Stéfano, Pelé, Maradona e Cruyff.”
Luis Cezar Menotti, técnico argentino.

“Com Cruyff eles sentiam que não poderiam perder”
Jimmy Burns, sobre o Barcelona de Cruyff.

“Minha maior satisfação seria ter treinado uma equipe como a Holanda de 1974. Era um time onde você poderia pegar o Cruyff e colocá-lo do lado direito. Se eu colocasse do lado esquerdo, ele jogaria do mesmo jeito.”
Telê Santana, técnico brasileiro.

"Eu amava a Holanda de 1970, eles me excitavam e Cruyff era o cara. Ele foi o coração de uma revolução no futebol. O Ajax mudou o futebol e ele foi o líder de tudo isso. Se ele quisesse poderia jogar em qualquer posição do campo."
Eric Cantoná, atacante francês.

BÔNUS: O MUNDO PERDE UM GÊNIO MUSICAL!!!

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