O futebol e o esporte em geral
(especialmente os coletivos) sempre foram formadores de micro sociedades no
meio em que acontecem. Os jogadores perdem seus valores como pessoas normais e
passam a representar papéis necessários enquanto atletas. Há sempre uma ideia
de respeitos pelos mais velhos (jogadores experientes, rodados), tolerância com
os mais novos e regras comportamentais que, quando quebradas, são julgadas por
uma entidade específica. No campo não está apenas acontecendo uma partida de
futebol, mas sim todo o desenvolvimento dessa micro sociedade. Em outras
palavras, o jogo é uma fotografia de noventa minutos onde podemos ver as
interações, as normas de fato, as normas sociais e os efeitos nos indivíduos
que ali estão. No meio de tudo isso os atletas testam sua liberdade e tentam subir
nessa sociedade. Alguns preferem a paciência, jogar com calma e errar o mínimo
possível. Outros preferem acelerar, correr e obrigar os outros indivíduos a
olhar para você com mais atenção. Mas há ainda outro grupo, geralmente composto
por volantes e defensores, os jogadores que tentam obter poder pela intimidação
e pela violência. É sobre eles que falaremos hoje.
Há duas verdades sobre os jogadores
violentos no futebol: a primeira é que nunca, em hipótese alguma, seus métodos
foram aprovados, fosse pelos torcedores ou pela imprensa. Em 1934 a equipe
caneluda da Itália eliminou a melhor seleção da época, o WonderTeam austríaco
comandado pelo artilheiro Matthias Sindelar, com um jogo violento que se
baseava em descer a botina nos melhores
jogadores da equipe adversária, futebol que foi muito criticado pelos
adversários e por todas as equipes da competição. O mesmo se seguiu nos anos
60/70, quando os clubes argentinos criaram péssima fama e forçaram muitas
equipes europeias a simplesmente desistir da disputa da taça intercontinental.
O episódio mais icônico é a histórica disputa entre Milan e Estudiantes em 69,
aonde dois jogadores chegaram a sair presos do estádio, tamanha a violência. E
durante toda a história do futebol a violência foi criticada, passando por
Berti Vogts na Copa de 74, Ricardo Giust na copa de 86 e Dunga em 94. Bater
sempre foi condenado, afinal fere a ideia de um jogo limpo e bonito, mas...
A segunda verdade sobre o jogo
violento é que ele tem uma razão de existir e é extremamente funcional pelo seu
objetivo. Como esporte jogado por homens, o futebol é adepto de uma cultura
machista (não estou usando “machista” de forma pejorativa e nem concordo com o
machismo, apenas entendam “cultura machista” como uma realidade social) onde os
seus membros precisam, assim como animais, marcar o território que defendem e
proteger a sua posição na micro sociedade. Como não faria muito sentido (nem
seria de bom tom) sair mijando pelo campo, o território é marcado através das
entradas fortes nos jogadores que “desrespeitam” a posição social ou o próprio
adversário (em alguns casos não é só o território que é marcado, mas também as
canelas e os joelhos alheios).
Avaliando de forma menos
naturalista, o jogador que quebra o outro está dando um recado direto aos
jogadores adversários: vocês podem se achar bons e tudo mais, mas não vão fazer
nada em cima de mim. E aí chegamos num outro ponto: a relação do atleta com o
espaço no campo é de posse. O zagueiro entende que a grande área é dele, que é
o mesmo que acontece com o goleiro na pequena área, o lateral com os lados do
campo e o volante com a intermediária defensiva. Essa relação de posse é muito
semelhante com a questão dos pivôs no basquete: eles protegem o garrafão do pivô
adversário e o aro das infiltrações dos atletas mais rápidos, tornando se donos
da área pintada. O basquete americano, por exemplo, usa um ótimo termo para
quando os pivôs conseguem defender o garrafão: “Not in my House”. É exatamente
isso que os Leandro Donizete da vida estão dizendo quando chegam mais forte:
essa é a minha casa, meu espaço no campo e você não vai pisar aqui sem ser
mordido por mim (o termo pitbull é sempre um bom adjetivo para jogadores deste
tipo, inclusive eles poderiam carregar uma plaquinha com os dizeres “Cuidado,
cão antissocial” no pescoço).
![]() |
Felipe Melo num dia normal. |
É por isso que atletas como Felipe
Melo, Nigel de Jong e Dunga são capitães e conhecidos como líderes em qualquer
time que joguem: eles conseguem, através das suas sutis entradas, passar
segurança para seus companheiros e desestabilizar o inimigo enquanto
interpretam o personagem do rei na micro sociedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário