quinta-feira, 24 de março de 2016

Quando bater quer dizer

            O futebol e o esporte em geral (especialmente os coletivos) sempre foram formadores de micro sociedades no meio em que acontecem. Os jogadores perdem seus valores como pessoas normais e passam a representar papéis necessários enquanto atletas. Há sempre uma ideia de respeitos pelos mais velhos (jogadores experientes, rodados), tolerância com os mais novos e regras comportamentais que, quando quebradas, são julgadas por uma entidade específica. No campo não está apenas acontecendo uma partida de futebol, mas sim todo o desenvolvimento dessa micro sociedade. Em outras palavras, o jogo é uma fotografia de noventa minutos onde podemos ver as interações, as normas de fato, as normas sociais e os efeitos nos indivíduos que ali estão. No meio de tudo isso os atletas testam sua liberdade e tentam subir nessa sociedade. Alguns preferem a paciência, jogar com calma e errar o mínimo possível. Outros preferem acelerar, correr e obrigar os outros indivíduos a olhar para você com mais atenção. Mas há ainda outro grupo, geralmente composto por volantes e defensores, os jogadores que tentam obter poder pela intimidação e pela violência. É sobre eles que falaremos hoje.

Leandro Donizete errando a bola mas acertando o alvo.
           Há duas verdades sobre os jogadores violentos no futebol: a primeira é que nunca, em hipótese alguma, seus métodos foram aprovados, fosse pelos torcedores ou pela imprensa. Em 1934 a equipe caneluda da Itália eliminou a melhor seleção da época, o WonderTeam austríaco comandado pelo artilheiro Matthias Sindelar, com um jogo violento que se baseava em descer a botina  nos melhores jogadores da equipe adversária, futebol que foi muito criticado pelos adversários e por todas as equipes da competição. O mesmo se seguiu nos anos 60/70, quando os clubes argentinos criaram péssima fama e forçaram muitas equipes europeias a simplesmente desistir da disputa da taça intercontinental. O episódio mais icônico é a histórica disputa entre Milan e Estudiantes em 69, aonde dois jogadores chegaram a sair presos do estádio, tamanha a violência. E durante toda a história do futebol a violência foi criticada, passando por Berti Vogts na Copa de 74, Ricardo Giust na copa de 86 e Dunga em 94. Bater sempre foi condenado, afinal fere a ideia de um jogo limpo e bonito, mas...
            A segunda verdade sobre o jogo violento é que ele tem uma razão de existir e é extremamente funcional pelo seu objetivo. Como esporte jogado por homens, o futebol é adepto de uma cultura machista (não estou usando “machista” de forma pejorativa e nem concordo com o machismo, apenas entendam “cultura machista” como uma realidade social) onde os seus membros precisam, assim como animais, marcar o território que defendem e proteger a sua posição na micro sociedade. Como não faria muito sentido (nem seria de bom tom) sair mijando pelo campo, o território é marcado através das entradas fortes nos jogadores que “desrespeitam” a posição social ou o próprio adversário (em alguns casos não é só o território que é marcado, mas também as canelas e os joelhos alheios).
            Avaliando de forma menos naturalista, o jogador que quebra o outro está dando um recado direto aos jogadores adversários: vocês podem se achar bons e tudo mais, mas não vão fazer nada em cima de mim. E aí chegamos num outro ponto: a relação do atleta com o espaço no campo é de posse. O zagueiro entende que a grande área é dele, que é o mesmo que acontece com o goleiro na pequena área, o lateral com os lados do campo e o volante com a intermediária defensiva. Essa relação de posse é muito semelhante com a questão dos pivôs no basquete: eles protegem o garrafão do pivô adversário e o aro das infiltrações dos atletas mais rápidos, tornando se donos da área pintada. O basquete americano, por exemplo, usa um ótimo termo para quando os pivôs conseguem defender o garrafão: “Not in my House”. É exatamente isso que os Leandro Donizete da vida estão dizendo quando chegam mais forte: essa é a minha casa, meu espaço no campo e você não vai pisar aqui sem ser mordido por mim (o termo pitbull é sempre um bom adjetivo para jogadores deste tipo, inclusive eles poderiam carregar uma plaquinha com os dizeres “Cuidado, cão antissocial” no pescoço).

Felipe Melo num dia normal.
             E você não pode negar que estes métodos são funcionais. O jogo é também uma guerra psicológica entre os atletas onde você precisa desestabilizar o seu adversário para que ele se sinta inseguro quando for realizar suas ações. São vários os casos em que um jogador muito habilidoso tem sua cabeça simplesmente quebrada pela intensidade do defensor. O sempre falastrão Johan Cruijff foi destruído na final contra a Alemanha em 74 pelo fato de ser marcado pelo incansável (e impaciente) Berti Vogts. Quando um jogador bate o outro pode seguir seu plano de jogo e não se abalar, ou então pode perder a confiança e sempre pensar duas vezes antes de decidir o que vai fazer. Sobre essa guerra psicológica e a importância da violência para imposição, uma espetacular entrevista do meia Petros, na época ainda no Corinthians:

            É por isso que atletas como Felipe Melo, Nigel de Jong e Dunga são capitães e conhecidos como líderes em qualquer time que joguem: eles conseguem, através das suas sutis entradas, passar segurança para seus companheiros e desestabilizar o inimigo enquanto interpretam o personagem do rei na micro sociedade.

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